Rota da Seda

Acompanhem-me numa aventura ao longo de milhares de quilómetros por terras inóspitas e povos exóticos

Quando, em 53 AC., Crassus, governador romano na Síria, atravessou com o seu exército o rio Eufrates ao encontro de uma das mais desastrosas campanhas militares do seu império, a batalha de Carrhes, ficou deslumbrado no momento em que os Partos, seus inimigos, desfraldaram os seus estandartes com cores reluzentes e nunca antes vistas. Segundo os historiadores, seria este o primeiro contacto que o Ocidente teve com a seda. Soube-se que esta vinha de um império mais longínquo que a Pérsia, que ficava ainda para além do que o próprio Alexandre Magno terá vislumbrado. Menos de uma década depois, já César ostentava esse tecido na suas cerimónias públicas. Com o aumento da sua procura, criaram-se várias rotas comerciais que ligavam a China, a produtora da seda, ao mar Mediterrâneo, permitindo assim as primeiras trocas, não só comerciais como também culturais entre dois mundos tão distantes como desconhecidos um do outro.

Como viajante que sou, confrontei-me com um grande desafio que tinha estabelecido para mim próprio: percorrer a outrora Rota da Seda, de Teerão até Pequim, uma aventura ao longo de 12000 quilómetros que me levariam pelo Turquemenistão, o país mais fechado do mundo a seguir à Coreia do Norte, Uzbequistão, Tajiquistão e Quirguistão até entrar na China, que percorreria de lés-a-lés.

A noite é passada no chão frio do aeroporto Humberto Delgado, num canto menos movimentado e com acesso a uma sempre útil tomada de eletricidade. Os ponteiros do relógio marcam quatro da manhã quando acordo em sobressalto com o despertador pois tenho de apanhar o primeiro de três voos low cost para chegar a Teerão.

Aterro pelas cinco da manhã do dia seguinte. Sinto um alívio quando ouço o som do carimbo a esbater-se no meu passaporte e uma voz monocórdica a dizer “bem-vindo ao Irão”. Mas sinto-me também desde logo observado pelos olhares de Khomeini e Khamenei, o fundador desta república islâmica em 1979 e do atual chefe religioso e político, gravados em cartazes que são omnipresentes nos quatro cantos desta teocracia.

Os turistas são escassos, fruto das tensões nesta zona do globo, bem como da diabolização que os media ocidentais fazem desta nação. Há quem olhe para mim com espanto, mas também com um sorriso nos lábios. Explico a quem mete conversa comigo que adoro o Irão, especialmente pela hospitalidade do seu povo e fica um travo de agradecimento no ar. Arranjo um cartão SIM com acesso à internet, confirmo se o VPN que já tinha instalado funciona, para assim aceder a aplicações que são aqui proibidas, como o Facebook, e faço-me à estrada através do Snapp, o Uber destas bandas.

O sol está a despontar, com os seus raios a trespassar as nuvens grossas que indicam que a chuva pode pregar uma partida. Peço ao condutor para me levar para o centro de Teerão e faço figas para que tudo corra bem no seu carro que tem mais de quarenta anos.  Agora sim, a viagem estava a começar.

Teerão ao nascer do sol

Uma família iraniana, com certeza

 

Já se faz dia quando chego ao centro de Teerão no velho carro que me faz sentir engolido por esta metrópole de quase nove milhões de habitantes. O taxista deixa-me finalmente à porta dos meus anfitriões. Sempre que posso, fico em casa de locais, para assim absorver muito mais das gentes e da cultura do país que estou a visitar. Antes de partir, contactei “Shirin” (nome fictício) para me hospedar. Esta é já a segunda viagem que faço ao Irão, pelo que sei muito bem os porquês de o colocar no pódio no que toca à hospitalidade de um povo.

A sua família estava à minha espera, com tudo preparado para a minha receção. Depois de um primeiro cruzar de olhares que se traduzem num tímido “olá”, cumprimentamo-nos todos com um aperto de mão. Tinha perante mim quatro pessoas, oriundas da classe média, em que Shirin era a filha mais velha. O pai não escondia a sua curiosidade pela minha pátria lusitana. “De Portugal, só conheço Ronaldo, Toni e Queiroz!”, exclamou.

No momento em que recebo lençóis, cobertor e uma almofada para fazer a minha cama sobre a grossa carpete da sala de estar, sou também presenteado com uma bandeja recheada de biscoitos e chá preto. Quis contribuir também para esse momento de comunhão e retirei alguma comida que tinha na mochila. Apesar de ser proibido o comércio de carne de porco no Irão, dados os preceitos islâmicos desta teocracia, não resisti e levei uma embalagem de presunto fatiado, da nossa produção nacional, uma iguaria que naquele país soaria a algo mais precioso que um diamante que os seus olhos veriam. “Mas nós podemos comer carne de porco, pois a nossa religião permite-o”, retorquiu a mãe. Esse foi o prato de entrada para partilharem comigo o segredo que eram obrigados a transportar consigo. “Nós não somos muçulmanos, mas sim bahá’í. Somos perseguidos neste país, temos irmãos que estão presos e já houve outros que foram executados”, contou-me o pai. Eu nunca tinha ouvido falar de tal religião, fundada nesse mesmo território por Bahá’u’lláh no século XIX. Depois de uma pesquisa na wikipédia, aprendi que, para eles, “o propósito humano é aprender a conhecer e a amar Deus através de métodos como orações, reflexões e ajuda aos outros”.

Mas nem só de pão (nem de presunto) vive o Homem. Trouxe um pouco da cultura do meu país, em formato mp3, e apresentei-lhes a voz de Amália Rodrigues. Horas depois, no seu momento de reflexão diária, partilhei com a mãe o “Barco Negro”, traduzindo-lhe a letra à medida que lhe ia explicando o que era ser português, aquele povo de tradição atlântica, que deambula numa falésia de onde, por vezes, se deixa cair num mar de saudade e de uma tristeza que não sabe explicar. Ebadi, nome fictício, arrepiou-se com a densa melancolia da nossa diva, e assim ficou a conhecer o fado. Segredou-me um “obrigado” muito trémulo, e repetiu essa gratidão quando a vi, mais tarde, a voltar a ouvi-la, com os olhos já envinagrados. “Não preciso de compreendê-la, basta-me senti-la”, desabafou.  

euronews em exclusivo no Irão: Sabe como se vive em Teerão?

 

           

 

 

Teerão ao nascer do sol