Cartografia & Arte: a arte no mapa
Temos que ter em vista que pensar em quem era artista e quem era cartógrafo nessa época não é uma questão tão simples. Até o século XVII os ofícios se confundiam. Os mais diferentes profissionais participaram da elaboração de mapas.
Na Europa, no Renascimento, as relações recíprocas entre a pintura e a cartografia foram intensas. A cartografia e a pintura de paisagem eram atividades familiares, seus praticantes compartilhavam percepções de espaço e do cosmos, enfrentavam problemas de representar fenômenos de maneira coerente em uma superfície plana, além de que eram atividades muitas vezes realizadas pela mesma mão.
No século XV o pintor Filippo Brunelleschi percebeu, através da observação, com a ajuda de um espelho, que as linhas de uma paisagem convergem para um ponto na linha do horizonte, desenvolvendo um sistema com um ponto de fuga. Décadas depois, Leon Battista Alberti escreveu um tratado que explica os métodos da perspectiva.

Brunelleschi descobrindo a perspectiva linear através de espelhos. Imagem editada. Fonte: wolfganghock
O espaço em uma pintura em perspectiva, portanto, é uniforme e mensurável.
Ponto de fuga no afresco “A última Ceia” de Leonardo Da Vinci (1495-96). Fonte: arteculturas
Pintores renascentistas consagrados também produziram mapas. Leonardo da Vinci, movido pelos problemas de medição, perspectiva e proporção, não só para fins artísticos (já que sabemos que também foi um grande cientista, inventor e engenheiro) se empenhou arduamente no estudo da matemática e da geometria. Entre os anos de 1501 e 1502, ele se voltou para a cartografia e a engenharia militar e produziu mapas da Itália central de notável precisão, encomendados pelo então general Cesar Borgia.
Comparação do mapa da cidade de Ímola feito por Leonardo Da Vinci em 1502 e uma imagem capturada através de satélites do programa Google Earth em 2016. Fonte: leonardodavinci.cc
Para dar forma física à cartografia era necessário dominar técnicas como a xilogravura, que envolve o entalhe de madeira e a gravura em cobre. Esses artesãos que se envolveram na produção de mapas se dedicaram à nitidez das linhas e à delicadeza das variações tonais, usufruindo de antigas técnicas da pintura como o uso de realces e sombras para mostrar relevos. E se engana quem pensa que essa dimensão artesanal que dá materialidade ao mapa estava separada da matemática e da geometria. Como já foi mencionado, não podemos pensar na divisão das profissões e dos conhecimentos a partir da configuração atual.
Na “arte de fazer mapas”, as cores, os símbolos, as gravuras e as legendas são elementos fundamentais para dar significado aos mapas.
A pluralidade dos ramos de conhecimento que compunham a cartografia se torna ainda mais evidente quando lembramos que muitos dos profissionais que produziram mapas se definiam como cosmógrafos – a exemplo do próprio Gerald Mercator. A cosmografia, de acordo com a definição de Mercator era o “estudo de todo o projeto universal que une os céus da terra e da posição, movimento e ordem de suas partes.” Os cosmógrafos fluíam entre os diversos campos de conhecimento como a astronomia, a física e a astrologia. Assim, para a cosmografia, não bastava apenas mapear a terra, era necessário também mapear os céus, o universo e o próprio tempo. E os mapas celestes não falharam em mostrar como os cosmógrafos dominavam também a técnica da pintura.
"Plano ptolomaico", de Andreas Cellarius (1661). Este mapa celeste representa o universo centrado na Terra teorizado por Claudius Ptolomeu. Fonte: Norman B. Leventhal Map Center Collection
É importante notar que quando observamos a estética dos mapas, não nos limitamos à decoração, nos atentando também às cores, à caligrafia, aos símbolos e até mesmo a orientação a partir da qual o mundo é cartografado. Desta forma, por mais que a ciência cartográfica tenha, ao longo de séculos, tentando assumir uma estética neutra e objetiva, os mapas expressam em sua estética as concepções de mundo, valores, escolhas e relações de poder.
O curioso é que a planta de Pinard parece constituir um retrocesso na evolução da cartografia, quando pensamos em termos de precisão geográfica, em relação a planta de Bufalini. Contudo, seu sucesso vem do ponto de vista do qual a cidade é retratada: é uma representação construída a partir de um ponto de vista elevado artificial, conhecido como “vista à voo de pássaro”. Este ponto de vista permite que as casas e monumentos não sejam reduzidos às suas fundações, constituindo figuras tridimensionais.
A partir de 1500 era comum que os cartógrafos representassem as cidades europeias a partir da vista do voo de pássaro. Nestes mapas somos colocados no lugar dos pássaros para admirar aquilo que eles veem quando planam acima da terra. E este tipo de vista aérea, ou panorâmica, não se limita às plantas urbanas do período, atravessando os séculos seguintes até a contemporaneidade, em mapas e imagens de diferentes naturezas. Já no século XV, a vista à voo de pássaro aparece em pinturas, como na obra “A Virgem do Chanceler Rolin” de Jan van Eyck, de 1435.
A Virgem do Chanceler Rolin, de Jan van Eyck, 1435. Fonte: Wikipedia
Por fim, entendemos que a história da cartografia é marcada pela inseparabilidade entre a arte e a ciência. Apenas partindo do entendimento do profundo diálogo entre arte e ciência é possível compreender a história da cartografia, em suas mais variadas dimensões.
Imagens
Capa: Novissima totius terrarum orbis tabula, de Jonh Seller (1672?) Fonte: https://collections.leventhalmap.org/search/commonwealth:st74cx36k
Vídeo mapa. Area Close-up Direction. Fonte: https://www.canva.com/
Treasure Map Navigation. Fonte: https://www.canva.com/
Mapa parede. Fonte: https://www.canva.com/
Cosmographie Universelle, de Guillaume Le Testu (1509-1572) 54 v, 55v. Fonte: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8447838j/f116.item.zoom#
Detalhe - Cosmographie Universelle, de Guillaume Le Testu (1509-1572) 54 v. Fonte: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8447838j/f116.item.zoom#
Detalhe - Cosmographie Universelle, de Guillaume Le Testu (1509-1572) 54 v. Fonte: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8447838j/f116.item.zoom#
Detalhe - Cosmographie Universelle, de Guillaume Le Testu (1509-1572) 52 v. Fonte: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8447838j/f116.item.zoom#
America , Jodocus Hondius (1630). Fonte: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8468716g/f1.item.zoom
D Stadt Loandas Pauli de Johannes Vingboons, 1665. Fonte: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Johannes_Vingboons_-_D_Stadt_Loandas_Pauli_(1665).jpg
Nova Amesterdã (atual Nova Iorque) de Johannes Vingboons, 1664. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jan_Vingboons#/media/Ficheiro:GezichtOpNieuwAmsterdam.jpg
Chaves do céu, de Pietro Perugino (1481–82) Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Perugino_Keys.jpg
Imagem 1:Brunelleschi descobrindo a perspectiva linear através de espelhos. Imagem editada. Fonte: https://pesquisadesenhotecnicoifes.webnode.com/perspectiva/
Imagem 2: Brunelleschi descobrindo a perspectiva linear através de espelhos. Imagem editada. Fonte: http://wolfganghock.com/pages%20F%20ist%20tot/26%20%20Brunelleschi%20p.html
Ponto de fuga no afresco “A última Ceia” de Leonardo Da Vinci (1495-96). Fonte: https://arteculturas.com/2017/04/26/perspectiva/
Retrato de Ptolomeu feito no século XVI por Theodor de Bry. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ptolemeu#/media/Ficheiro:Ptolemy_16century.jpg
Imagem 2: Mapa de Ptolemeu, reconstituído da sua obra “Geografia (ca. 150), no qual paralelos são representados como círculos e os meridianos como retas. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ptolemeu#/media/Ficheiro:PtolemyWorldMap.jpg
Comparação do mapa da cidade de Ímola feito por Leonardo Da Vinci em 1502 e uma imagem capturada através de satélites do programa Google Earth em 2016. Fonte: http://leonardodavinci.cc/cartografia-do-mundo/
Oficial e Garota Sorrindo de Johannes Vermeer, 1655-1660. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Officer_and_Laughing_Girl
Retrato de Gerald Mercator e Jodocus Hondius, feito por Colette van den Keere Hondius (1628–1633). Fonte: https://collections.leventhalmap.org/collections/commonwealth:41688024w
Detalhe - “Udrone, Irlandiae in Catherlagh Baronia”, de Gerald Mercator (1595). Fonte: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b53225436j/f1.item.zoom#
"Plano ptolomaico", de Andreas Cellarius (1661). Fonte: https://collections.leventhalmap.org/collections/commonwealth:41688024w
Orbis Plancius, de Petro Plancio e Iohannes a Duetecum iunior (1594). Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/c5/1594_Orbis_Plancius_2%2C12_MB.jpg
Nova Totius Terraru, de Nicolaes Visscher (1652) Fonte: https://www.davidrumsey.com/luna/servlet/workspace/handleMediaPlayer;JSESSIONID=5ae59d63-7a73-414a-9c9f-83000ff097ac?qvq=q%253AVisscher%253Bsort%253Apub_list_no_initialsort%252Cpub_list_no_initialsort%252Cpub_date%252Cpub_date%253Blc%253ARUMSEY%257E8%257E1&trs=377&mi=11&lunaMediaId=RUMSEY~8~1~301179~90072271
Detalhe - Nova Totius Terraru, de Nicolaes Visscher (1652) Fonte: https://www.davidrumsey.com/luna/servlet/workspace/handleMediaPlayer;JSESSIONID=5ae59d63-7a73-414a-9c9f-83000ff097ac?qvq=q%253AVisscher%253Bsort%253Apub_list_no_initialsort%252Cpub_list_no_initialsort%252Cpub_date%252Cpub_date%253Blc%253ARUMSEY%257E8%257E1&trs=377&mi=11&lunaMediaId=RUMSEY~8~1~301179~90072271
Detalhe - Mapa-mundi, de Tobias Lotter, (1775) Fonte: https://www.wdl.org/pt/item/7/
Planta de Roma, de Leonardo Bufalini (1551). Fonte: https://www.info.roma.it/pianta_di_roma_1551_leonardo_bufalini.asp
Planta de Roma, de Hugues Pinard (1558) Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/f/ff/Map_of_Rome,_Ugo_Pinard_1555.jpg/1280px-Map_of_Rome,_Ugo_Pinard_1555.jpg
A Virgem do Chanceler Rolin, de Jan van Eyck, 1435. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Jan_van_Eyck_The_Virgin_of_Chancellor_Rolin.jpg
Detalhe - A Virgem do Chanceler Rolin de Jan van Eyck, 1435. Fonte: https://www.jornaltornado.pt/a-virgem-do-chanceler-rolin-jan-van-eyck/
Vídeo New 3D imagery of Rome in Google Earth 7 (2012) Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Nw5oKxyp9Do
fólio 1 verso do Cabreo da Congregação dos Cavalheiros da Natividade da Virgem Maria. Fonte: https://www.utpjournals.press/doi/full/10.3138/cart.53.4.2018-0004
fólio 12 do Cabreo da Congregação dos Cavalheiros da Natividade da Virgem Maria. Fonte: https://www.utpjournals.press/doi/full/10.3138/cart.53.4.2018-0004
fólio 1 do Cabreo da Congregação dos Cavalheiros da Natividade da Virgem Maria. Fonte: https://www.utpjournals.press/doi/full/10.3138/cart.53.4.2018-0004
Carlos de Grunenbergh (atribuido), Siracusa, 1686. Fonte: https://go.gale.com/ps/i.do?id=GALE%7CA469641408&sid=googleScholar&v=2.1&it=r&linkaccess=abs&issn=02146452&p=IFME&sw=w&userGroupName=anon%7Edf7dde8a
Anônimo, Litoral entre Taormina e Messina, 1686. Fonte: https://go.gale.com/ps/i.do?id=GALE%7CA469641408&sid=googleScholar&v=2.1&it=r&linkaccess=abs&issn=02146452&p=IFME&sw=w&userGroupName=anon%7Edf7dde8a
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Muelle de Palermo, da Teatro Geografico antiguo y moderno del reyno de Sicilia, 1686. Fonte: https://go.gale.com/ps/i.do?id=GALE%7CA469641408&sid=googleScholar&v=2.1&it=r&linkaccess=abs&issn=02146452&p=IFME&sw=w&userGroupName=anon%7Edf7dde8a
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